Com Biden aos 80, Kamala entra na linha de frente em corrida da reeleição
No mesmo dia em que o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou que tentaria a reeleição para a Casa Branca, Kamala Harris fez um discurso na Universidade Howard que condensou a imagem que os democratas querem vender.
Na universidade historicamente de maioria negra onde ela mesma se formou em ciência política e economia nos anos 1980, a primeira vice-presidente de origens africana e asiática do país defendeu o direito ao aborto e atacou o que chamou de extremistas conservadores.
O momento também condensou as críticas que recebe desde que assumiu o segundo maior cargo dos EUA.
“Uma salada bizarra de palavras” e “incapacidade de se expressar normalmente”, chamaram a Fox News e outros veículos conservadores ao destacarem um excerto em que Kamala diz: “É muito importante, como vocês ouviram de tantos líderes incríveis, para nós, em todos os momentos e certamente neste, ver o momento no tempo em que existimos e estamos presentes e ser capaz de contextualizá-lo, para entender onde existimos na história e no momento que se relaciona não apenas com o
passado, mas com o futuro.”
Com o anúncio da candidatura de Biden, que estará às vésperas de completar 82 anos na próxima eleição, todos os olhos se voltam para Kamala, 58, que assumiria o governo em eventual afastamento do presidente -e a colocam na linha de tiro da campanha.
Os baixos índices de aprovação ao redor de 40%, segundo o site FiveThirtyEight, e uma gestão considerada errante na Vice-Presidência devem torná-la alvo preferencial dos republicanos.
O governo democrata tenta vender uma imagem de união da vice com o presidente. No vídeo do lançamento da campanha democrata, há uma série de imagens de Biden com Kamala e até algumas dela sozinha com eleitores. No site oficial, também salta aos olhos uma imagem em que ela aparece com o mesmo destaque que ele.
Mas nem sempre foi assim. O portal americano Axios classificou os dois primeiros anos de governo democrata de “desconfiança mútua e tiroteios anônimos”.
No livro “This Will Not Pass: Trump, Biden, and the Battle for America’s Future”, os autores, repórteres do jornal The New York Times, relatam que Kamala e sua equipe se queixavam de que ela recebera uma missão impossível de se lidar, a crise migratória na fronteira com o México.
Incumbida de ser a face pública do governo em assuntos de migração, um dos assuntos pelos quais a gestão democrata é mais atacada, Kamala, ela própria filha de migrantes, foi questionada pela pouca atenção dada ao tema. A situação piorou quando deu uma entrevista considerada desastrosa à NBC, em que teve dificuldades em explicar porque ainda não havia visitado a fronteira -ela passou um ano evitando entrevistas exclusivas para não causar mais mal-estar à Casa Branca, ainda segundo o NYT.
Do outro lado, Kate Bedingfield, então porta-voz da Casa Branca, começou a dizer que a culpa da crise de imagem era dela, que seu período como senadora foi uma bagunça e que sua campanha presidencial em 2020 foi um fiasco. A obra também relata insatisfação da primeira-dama, Jill Biden, com a escolha dela para a composição da chapa. Os dois lados negaram os episódios.
Se teve dificuldades com a questão migratória, Kamala encampou bandeiras importantes do governo, a principal delas o aborto, sobretudo depois que as midterms mostraram que o tema foge da disputa entre direita e esquerda e mobiliza até mulheres em estados mais republicanos.
Kamala também representou o governo Biden em polêmicas recentes. No começo do mês, viajou ao Tennessee para encontrar os dois deputados expulsos da Câmara por participarem de manifestações por mais rigor no controle de armas. Ela também foi ao funeral de Tyre Nichols, homem negro que morreu após ser espancado por policiais de Memphis, no mesmo estado.
Kamala recebeu incumbências importantes na arena global. Em fevereiro, participou da Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, onde fez forte discurso condenando a Rússia pela invasão da Ucrânia. Neste mês, fez um giro pela África, em uma contraofensiva para conter a influência chinesa na região.
Mas a atuação prática mais valiosa de Kamala no começo do governo Biden foi doméstica. Isso porque nos EUA o vice-presidente é também presidente do Senado e tem o poder de desempatar votações.
Nos primeiros dois anos da atual gestão o Senado tinha 50 republicanos e 50 democratas, e Kamala é a segunda vice-
presidente com mais votos de desempate na história do país.
Em apenas dois anos ela votou 29 vezes para resolver votações apertadas. Mais que isso, apenas John C. Calhoun, com 31 votos quase dois séculos atrás, entre 1825 e 1832. Para efeitos de comparação, o vice de Donald Trump, Mike Pence, deu 13 votos de desempate em quatro anos, e Joe Biden, quando vice de Barack Obama, zero.
A escolha do vice é importante para balancear características de quem ocupa a cabeça de chapa, disse um estrategista democrata à Folha. Dick Cheney e Joe Biden emprestavam credibilidade e experiência aos jovens George W. Bush e Obama, respectivamente.
Já Kamala tem a função oposta: ainda que com alguma experiência na gestão pública, sua função simbólica é trazer frescor e diversidade à imagem do homem branco e idoso encarnada por Biden.
“Kamala tem falado sobre assuntos como aborto, inclusão, mudanças climáticas. Essas questões podem ser um ativo nas urnas a um ponto em que as posições de candidatos a vice-presidente normalmente não são”, diz Joel Goldstein, professor da Universidade de Saint Louis.
Para ele, Kamala não decola devido à impressão negativa deixada no começo do governo e ao fato de ser a primeira mulher e pessoa de uma minoria racial no cargo. Contudo, se o adversário republicano de fato for Trump, que terá 78 anos na eleição, seu vice será tão escrutinado quanto ela, uma vez que a idade avançada do ex-presidente também será contestada. “A eleição vai girar muito em torno dos vices, porque serão eles quem poderão assumir a Presidência”, afirma Goldstein.
FOLHAPRESS