
Não são nem 10 horas da manhã e o cheiro de comida se espalha pelos arredores do residencial Alto da Paz, no Cais do Porto, em Fortaleza. Nas panelas da cozinheira Josenilda de Melo e da auxiliar Joana D’Arc, a carne moída ganha cor e consistência, os legumes amolecem, e o arroz e o feijão chegam ao ponto certo de abastecer, daqui a pouco, as 100 quentinhas que serão distribuídas para moradores do entorno.
A Cozinha Solidária da Associação dos Moradores do Alto da Paz (Amap), gerida pela União de Jovens do Vicente Pinzón (UJVP), é uma das 1.080 Unidades Sociais Produtoras de Refeições (USPR) credenciadas junto ao Programa Ceará Sem Fome, do Governo do Estado. Juntas, elas fornecem 100 mil quentinhas por dia, de segunda a sexta-feira, ajudando a matar a fome de pessoas em extrema vulnerabilidade social.
Nos últimos meses, o Diário do Nordeste visitou cinco cozinhas do Programa, em quatro cidades do Estado, para conhecer o trabalho dos profissionais envolvidos e a recepção dos beneficiários. Assim, servimos o especial “Ceará: Comer e Curar”, que mostra os sabores e desafios do combate à insegurança alimentar e seus impactos em áreas como saúde, economia e educação.
A resposta à fome exige comprometimento e rotina. Josenilda e Joana abrem a cozinha por volta das 7h para iniciar um ritual. Limpam o ambiente, colocam a proteína do dia (carne bovina, frango, porco ou peixe) para descongelar e começam a descascar cenouras e batatas. Depois, é o fogão industrial que entra em ação, mas sempre comandado pelas duas mulheres. Por volta das 10h30, já é o momento de “empratar” as refeições nas marmitas: é que às 11h já tem gente na fila.
No dia em que as visitamos, a primeira era a salgadeira Soraide de Moura Rodrigues, 43, que busca quentinhas para ela e mais quatro pessoas – segundo ela, uma economia “grande” para uma família que sobrevive de bicos. “Antes, só quem trabalhava era eu, que bancava a casa, mas agora tá difícil. Na janta, a gente só faz alguma coisa, um lanche”, confessa. Agora, pelo menos, o almoço é sinônimo de variedade e fartura. “Todo dia é uma opção nova, diferente, não é aquela coisa repetitiva, é gostoso”, comemora.
Os elogios não envaidecem Joana D’Arc, 50, também moradora do residencial. Na verdade, são combustível para a atividade extra, porque também vende cosméticos para completar a renda. “A gente se sente feliz porque vê o sorriso da pessoa recebendo aquela comida. Tem gente que amanhecia o dia e não tinha nada pra comer”, lembra ela, que tem experiência como agente social na comunidade.
Ao buscar a marmita, cada beneficiário assina uma lista de presença. Segundo Mônica Felipe, presidente da Amap, a maioria já era acompanhada pela assistência social quando o local ainda era uma ocupação. “São famílias chefiadas por mulheres, desempregadas, com crianças”, conta. “Também tem gente aqui que é idosa, aposentada, mora só, então o dinheiro só dá pros remédios”.
Mesmo com o fornecimento das 100 marmitas, há filas de espera. Se algum cadastrado não comparece à entrega, as cozinheiras distribuem as remanescentes a quem opta por esperar em frente à cozinha. Outros aguardam a inclusão na lista oficial, quando alguém desiste ou se torna capaz de custear a própria alimentação.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje
Por volta de 11h, noutro ponto da cidade, também se inicia a distribuição de quentinhas numa das 58 cozinhas geridas pelo Instituto de Defesa da Cidadania Social (Acflor), responsável pela produção de 5.800 por dia, 29 mil por semana e 116 mil por mês, nas contas do coordenador Ednardo Bezerra. O perfil de atendidos varia de crianças a idosos.
Na unidade que funciona anexa à Paróquia Nossa Senhora de Fátima, no bairro Floresta, os primeiros beneficiários a chegar se reúnem com a equipe para um momento ecumênico de oração e agradecimento, para depois formarem a fila de retirada das 100 refeições.
Maria Zuleida do Nascimento, 60, pega quentinhas no local há mais de seis meses, depois que agentes de campo a cadastraram na iniciativa. A idosa, que faz tratamento contra doenças circulatórias, explica que “às vezes nem tem” comida em casa, mas no salão da igreja “é só sentar e comer”. “Quando é feriado, sinto falta, mas não tenho o que dizer. Gosto muito das quentinhas. É só alegria, que nunca falte!”, espera.
*DN