PL do aborto: saiba o que diz a lei considerada um retrocesso por especialistas

No dia 12 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, conhecido como PL da Gravidez Infantil ou PL do Aborto. A proposta equipara o aborto legal de gestação acima de 22 semanas — direito previsto em lei desde 1940 em caso de estupro, risco à pessoa gestante ou anencefalia — ao crime de homicídio.
A matéria foi pautada sem aviso prévio pelo presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), que fez votação relâmpago e, em exatos 23 segundos, considerou a urgência aprovada em votação simbólica, ou seja, sem registro do voto de cada deputado no painel eletrônico. Com a urgência, o PL pode ser votado diretamente no plenário da Câmara sem precisar passar pela análise de comissões relacionadas ao tema do projeto.
A seguir, entenda o que o diz a legislação atual, quais as mudanças propostas e como será a tramitação do projeto no Congresso.
O que diz a legislação atual sobre o aborto
O direito ao aborto é previsto em lei no Brasil desde 1940. Segundo os artigos 124 a 128 do Código Penal, mulheres podem interromper uma gravidez sem que isso seja considerado crime em três casos:
se a gestação oferece risco à vida da gestante;
se a gravidez é resultado de violência sexual;
se o feto for diagnosticado com anencefalia (má formação do cérebro).
Segundo o Código Penal, não há qualquer limite de tempo de gestação para que o aborto legal seja realizado nos casos de estupro ou de risco à vida de quem gesta. Desde 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), gestantes também têm a liberdade para decidir pela interrupção da gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, anencefalia (má formação do cérebro) sem que haja um tempo limite para a realização do procedimento.
Em 2022, o Ministério da Saúde, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), recomendou em uma nota técnica que o aborto legal fosse realizado só até 21 semanas e 6 dias de gestação. Essa recomendação, contudo, não tinha força de lei, ou seja, não alterou a legislação até então vigente no Brasil. Ela foi baseada em argumentos da tese de “viabilidade fetal”, ou seja, viabilidade de sobrevivência do feto fora do útero a partir desse tempo — e, por isso, seria o caso de um parto prematuro, e não de aborto.
Em 21 de março deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução (Resolução CFM Nº 2.378) proibindo médicos de realizarem a técnica clínica de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas nos casos de aborto legal já previstos em lei. A norma, contudo, foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio deste ano.
A decisão, na época, motivou uma onda de conteúdos desinformativos, com publicações que distorciam ou deixavam de fora explicações técnicas sobre os procedimentos com o intuito de manipular a opinião pública.
Vale pontuar que tanto a recomendação de 2022 quanto a resolução do CFM — suspensa pelo STF — não têm validade de lei, ou seja, não alteraram o que está em vigor desde 1940 no Código Penal. Até o momento, pessoas gestantes que foram estupradas, que correm risco de vida ou cujos fetos forem diagnosticados com anencefalia têm direito ao aborto legal em qualquer idade gestacional.
O que propõe o PL 1904?
O PL 1904/2024 foi apresentado na Câmara em 17 de maio deste ano pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, a maioria homens. Dos 33 proponentes, apenas 11 são mulheres.
O projeto propõe um limite de até 22 semanas para a realização de aborto nos casos de estupro, feto anencéfalo ou risco à gestante. Na prática, isso muda a regra vigente, uma vez que a lei atual não prevê limite da idade gestacional para realizar o procedimento nestes casos.
Além dessa mudança, o PL 1904 prevê uma pena que pode chegar a até 20 anos de prisão tanto para gestantes quanto para quem realiza o aborto após 22 semanas de gestação, equiparando a punição aos crimes de homicídio simples (artigo 121 do Código Penal). Essa penalidade, entretanto, é maior do que a prevista para o estuprador. Segundo o artigo 213 do Código Penal, a pena para quem comete esse crime é de seis a dez anos de prisão.
Dentre as justificativas apresentadas, os parlamentares que propuseram o projeto argumentam que “em 1940, quando foi promulgado o Código Penal, um aborto de último trimestre era uma realidade impensável e, se fosse possível, ninguém o chamaria de aborto, mas de homicídio ou infanticídio”.
Os deputados que assinam a proposta são Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), Evair Vieira de Melo (PP-ES), Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP), Gilvan da Federal (PL-ES), Filipe Martins (PL-TO), Dr. Luiz Ovando (PP-MS), Bibo Nunes(PL-RS), Mario Frias (PL-SP), Delegado Palumbo (MDB-SP), Ely Santos (Republicanos-SP), Simone Marquetto (MDB-SP), Cristiane Lopes (União Brasil-RO), Renilce Nicodemos (MDB-PA), Abilio Brunini (PL-MT), Franciane Bayer (Republicanos-RS), Carla Zambelli (PL-SP), Dr. Frederico (PRD-MG), Greyce Elias (Avante-MG), Delegado Ramagem (PL-RJ), Bia Kicis (PL-DF), Dayany Bittencourt (União-CE), Lêda Borges (PSDB-GO), Junio Amaral (PL-MG), Coronel Fernanda (PL-MT), Pastor Eurico (PL-PE), Capitão Alden (PL-BA), Cezinha de Madureira (PSD-SP), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Pezenti (MDB-SC), Julia Zanatta (PL-SC), Nikolas Ferreira (PL-MG), Eli Borges (PL-TO) e Fred Linhares (Republicanos – DF).
Quantos casos de estupro são registrados no Brasil?
No Brasil, o dado nacional mais recente disponível é de 2022, quando foram registrados quase 75 mil estupros — número recorde desde 2011, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Isso dá uma média de 205 estupros por dia ou de um abuso a cada 7 minutos.
A maioria das vítimas é criança ou adolescente. Segundo a edição 2022 do Anuário, com dados de 2020 a 2021, pelo menos 61,3% dos estupros registrados no país foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (página 4). Vale pontuar que um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que apenas 8,5% dos crimes de estupro são reportados à polícia e 4,2%, ao sistema de saúde, ou seja, a quantidade de crimes do tipo é ainda maior.
O que mudará caso o PL 1904 seja aprovado?
Caso o projeto de lei seja aprovado, mulheres que sofrem estupro e que por ventura engravidem dos criminosos poderão ser presas caso optem por não seguir com a gestação após 22 semanas de gravidez em caso de uma gestação que oferece risco à vida da mulher ou caso o feto tenha sido diagnosticado com má formação do cérebro. Afinal, a proposta estabelece que “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”, sem fazer qualquer distinção entre crianças e pessoas adultas.
Instituições e movimentos sociais alertam que o número de casos de crianças grávidas podem aumentar caso o PL seja aprovado porque muitas das vítimas de estupro que vivem em situações de vulnerabilidade social podem não conseguir interromper a gestação dentro do prazo limite estabelecido de 22 semanas.
Em nota, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) informou que a proposta “é inconstitucional, viola o Estatuto da Criança e do Adolescente e contraria normas internacionais que o Brasil é signatário”.
O Conama também alegou que a “gestação, como a concretização de uma situação de estupro e a obrigatoriedade do prosseguimento da gravidez, é uma nova violência, um processo de revitimização agora imposto pelo Estado brasileiro, e que pode ser comparado com situações de tortura”.
Vale pontuar que crianças que foram estupradas e engravidam tendem a demorar mais para procurar ajuda médica — e, quando conseguem meios legais para realizar o aborto, já estão com mais de 20 semanas de gestação. Além disso, a maioria dos casos de abusos de crianças costuma ocorrer dentro de suas casas e por pessoas conhecidas.
Especialistas explicam que, além de serem ameaçadas e constrangidas por seus agressores, essas meninas ainda desconhecem as mudanças do próprio corpo e têm pouco acesso aos serviços de saúde, sem contar que enfrentam burocracia e oposições morais e religiosas.
Quando o PL será votado pelos parlamentares?
Em 4 de junho de 2024, o deputado Eli Borges (PL-TO) apresentou um requerimento solicitando regime de urgência para a votação do PL 1904/2024. No dia 12, o pedido foi aprovado em votação simbólica — quando os votos não são computados individualmente —, com 33 parlamentares se posicionando favoráveis ao regime de urgência.
Diante disso, o PL agora poderá ser votado diretamente no plenário sem precisar passar por comissões temáticas. Mas, antes disso, a Câmara precisará definir um relator para a proposta, que analisará o texto atual e poderá sugerir alterações antes de o projeto ser votado pelos parlamentares.
O que acontece se o projeto for aprovado?
Caso o PL seja aprovado pelos deputados federais, ele será encaminhado para análise do Senado. Se os senadores mudarem algo na proposta antes de aprovarem, o texto terá de voltar para nova análise na Câmara. Caso o Senado dê aval à medida sem nenhuma mudança no texto aprovado pela Câmara, o projeto segue para sanção do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancioná-lo integralmente, vetar alguns trechos ou vetá-lo integralmente.
Em caso de vetos de Lula, a proposta voltará para o Congresso, que pode, em nova votação, acatar a decisão presidencial ou derrubar todos os vetos e promulgar a lei — que, então, passará a valer em todo o país.
*Lupa UOL