Concurso do Senado restringe vagas que podem ser disputadas por negros
O Senado Federal colocou os candidatos negros aprovados no concurso para o cargo de analista legislativo apenas na lista de cotas raciais e, segundo a Educafro, descumpriu a legislação. Na prática, diz a entidade, seis candidatos pretos e pardos já foram prejudicados.
A lei de cotas em concursos públicos -aprovada em 2014 pelo Congresso- reserva 20% das vagas para candidatos negros, mas afirma que eles disputam as vagas reservadas e as de ampla concorrência ao mesmo tempo.
Assim, de acordo com a lei, candidatos pretos e pardos que têm nota para serem aprovados pela lista geral do concurso, dentro do número de vagas oferecidas à ampla concorrência, devem ser excluídos da lista de cotas.
A partir do último concurso feito pelo Senado, no segundo semestre do ano passado, 42 pessoas foram convocadas para o cargo de analista legislativo com especialidade em administração.
A Educafro afirma, no entanto, que, dos 8 negros nomeados, apenas 2 precisariam realmente das cotas raciais; os outros 6 já estariam classificados de qualquer maneira.
A entidade diz assim que, na prática, o Senado transformou o piso de 20% de vagas reservadas para negros em um teto, e fez com que o critério inclusivo se tornasse “critério de exclusão”.
Em resposta ao questionamento da Educafro, a Advocacia do Senado elaborou um parecer de 32 páginas em que defende que a nomeação foi feita corretamente, seguindo a lei de cotas.
No documento, o Senado afirma que a lei não traz “de forma específica o procedimento a ser observado para a realização das nomeações” e que, por isso, é preciso “obter a interpretação mais harmônica ao sistema”.
Assim, para cumprir o mínimo de 20% de negros, a Advocacia diz que a comissão do concurso decidiu convocar um negro a cada três vagas.
Com isso, candidatos pretos e pardos que tinham nota para entrar sem o sistema de cotas acabaram excluídos da lista de ampla concorrência -o que, consequentemente, fez com que candidatos que efetivamente poderiam ser convocados dentro do percentual de 20% fossem preteridos.
O Senado argumentou ainda que o sistema é mais benéfico para os candidatos negros porque a ordem de nomeação do funcionário público é incorporada à ficha funcional e, futuramente, pode ser usada como critério de desempate.
“Na hipótese de o candidato ter logrado êxito na classificação de ampla concorrência e, simultaneamente, na classificação de candidatos negros, observar-se-á, no momento da convocação (nomeação) a regra que melhor lhe beneficiar”, escreveu a comissão examinadora.
No caso concreto, o primeiro candidato negro aprovado estava na 10ª posição da lista geral. Com o entendimento do Senado, ele foi o 3° a ser convocado, mas pela reserva de cotas. Um dos problemas, segundo a Educafro, é que o candidato já seria chamado independentemente da lei (assim como outros 5 que estavam nas posições de números 14, 24, 28, 30 e 31).
Desde a nomeação, candidatos que se sentem prejudicados têm acionado a comissão examinadora do concurso público, sem sucesso. Agora, a Educafro tenta a intervenção do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da mesa diretora.
No documento, assinado pelos advogados Irapuã Santana e Felipe Monnerat Solon de Pontes, a entidade afirma que o exemplo usado pelo Senado (de três vagas) é diferente do caso concreto, e diz que a aplicação da lei é singela.
“Na prática, as longas explicações da comissão [examinadora] e da Advocacia apenas evidenciam o duplo twist carpado hermenêutico -na feliz expressão do ministro Ayres Britto- que transformou a cota de 20% de vagas reservadas em verdadeiro teto, impossibilitando que mais candidatos negros viessem a se inserir nos quadros desta Casa.”
Os advogados argumentam ainda que, mesmo que a lei desse margem para o entendimento da comissão examinadora (o que, segundo eles, não é caso), o Senado deveria adotar a interpretação mais benéfica aos candidatos negros porque a intenção da lei é aumentar o número de pretos e pardos no funcionalismo.
“Ora, entre 2 (duas) interpretações possíveis da norma, por óbvio deve ser adotada aquela que melhor atende à sua finalidade inclusiva e aos princípios constitucionais que dão fundamento de validade à política pública de inclusão criada pelo Congresso Nacional”, dizem.
Ciente do impasse, o primeiro-secretário da mesa diretora, senador Rogério Carvalho (PT-SE), pediu um parecer à consultoria legislativa do Senado.
No documento, assinado em 15 de março e obtido pela reportagem, a consultoria do Senado reforçou o entendimento da Educafro e afirmou que a lei de cotas não precisa ser aperfeiçoada, mas apenas cumprida.
No parecer, a consultoria ressalta que o objetivo maior da legislação é ampliar o número de servidores e empregados públicos negros, e afirma que nenhuma interpretação “que conduza à redução do máximo número possível de candidatos negros nomeados deve ser admitida”.
“No pior dos cenários, sob a ótica da construção de uma sociedade inclusiva e plural, ao menos 20% das vagas seriam ocupadas por negros, na hipótese de nenhum candidato negro ser aprovado nas vagas destinas à ampla concorrência”, diz.
“Felizmente não é isso que temos observado. Tem crescido de forma significativa o número de candidatos negros aprovados nas vagas destinadas a ampla concorrência, como demonstra o resultado do concurso público do Senado Federal 2022/2023”, conclui.
Para resolver o impasse, a Educafro propõe que o Senado cancele a nomeação de seis candidatos não cotistas ou convoque mais candidatos cotistas -o que obedeceria a proporção definida em lei.
Na manifestação enviada ao presidente do Senado, a Educafro ressalta que prefere essa alternativa “uma vez que o objetivo de todos é a inclusão de pretos ou pardos, e não a exclusão de quem quer que seja”.
O presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Distrito Federal, Beethoven Nascimento de Andrade, afirma que o Senado desvirtuou a política afirmativa e reduziu o acesso de negros.
“O que se percebe é um desvirtuamento da política afirmativa, a pretexto da benevolência da banca avaliadora em lançar os candidatos em ‘melhores’ posições, o que soa absurdo”, diz à Folha.
“Ao agir assim, a banca de avaliação não apenas desvirtua a política de cotas, mas lança ao limbo toda a luta inclusiva, pois passa a informação à sociedade de que negros possuem ‘vagas especiais’ exclusivas para negros, o que já é uma quimera social aos que desconhecem e atuam contra políticas afirmativas.”
Procurado pela reportagem, o Senado afirmou que “cumpre integralmente a legislação referente a cotas para candidatos negros e pessoas com deficiência” e que o parecer da Advocacia “corroborou o entendimento adotado pela administração”.
“Quanto à nomeação dos candidatos do atual concurso, o Senado Federal cumpriu todas as disposições normativas relacionadas à matéria, não podendo prosperar a alegação de que houve erro na convocação dos aprovados”, disse em nota.
O Senado também enviou o documento elaborado em resposta à Educafro e destacou o trecho em que diz que a metodologia usada “garante maior estabilidade e previsibilidade à lista de nomeação, concretizando-se os princípios da isonomia e impessoalidade”.
FOLHAPRESS